Artigo do amigo e psicanista ANTÔNIO SECUNDO
publicado no jornal Diário do Nordeste
Foi um período por muito tempo esquecido pelos historiadores, chegando a ser tratado preconceituosamente de ´A Idade das Trevas´, período no qual se imaginava que houvesse uma estagnação em tudo, o que não é verdade. Ao contrário, foi um tempo rico em transformações, no qual ocorreu o surgimento de grandes cidades e com elas o desenvolvimento do comércio, das assembléias representativas, o nascimento do Individualismo, o julgamento por tribunais, a ascensão da Arquitetura, da Arte e da educação colegial, a criação das primeiras universidades, a solidificação do estudo do Direito, a criação das monarquias nacionais, que permitiram mais tarde a criação do estado moderno, e muitas outras conquistas até hoje tão fundamentais para a humanidade.
Não devemos, porém, nos esquecer de que foi um momento de grandes adversidades, tais como a fome, a peste negra, as guerras, as atitudes preconceituosas, a perseguição, a tortura e muitas outras. Consideramos que tudo isso representa a complexidade daquele período que deve ser observado e considerado nas pesquisas contemporâneas em seus mais diversos âmbitos.
Nosso ponto de partida é o ano 1000 da era cristã, uma data marcante na história da humanidade, na qual se situa uma virada para uma série de coisas no mundo ocidental, e que ficou inscrito principalmente como o ano do início de uma mudança de perspectiva da humanidade perante o futuro. Foi esperado como o último, o ano do Juízo Final. Muitas outras datas foram previstas para o fim do mundo após esta, só de 1186 a 1494 foram 20 previsões, ou seja, tornou-se uma idéia recorrente e permanente que estava relacionada diretamente ao evangelho de São Matheus, no qual se relatava os sinais indicados por Cristo aos seus discípulos de um fim dos tempos: terremotos, fome, guerras - situações muito presentes na Idade Média - eram alguns desses indícios. (Richards, pág. 14, 1993).
É importante notar que as idéias dos malefícios e destruição daquela época estão associadas diretamente aos pecados praticados pela própria humanidade, sendo aquelas adversidades consideradas castigos. A idéia do mal logo se ligou à de um Anticristo, figura central na Idade Média, que, a partir do século X, passou a ser investigado com grande freqüência e interesse pelos teólogos. O Anticristo tornou-se então um dos personagens principais da cena medieval e sobre quem muito se investigou a partir daquela época, como aponta Richards em seu - ´Estudos sobre as minorias na Idade Média: Desvio, sexo e danação´.(1993)
A natureza do inimigo
O surgimento de uma figura como o Anticristo servia para apontar um caminho a ser evitado, um exemplo a não ser seguido e principalmente um inimigo a ser combatido. Para isso, era preciso conhecê-lo, identificá-lo. Foi seguindo o rastro destas idéias que muitas perseguições foram forjadas e muitas classes de pessoas foram consideradas anticristos, notadamente as chamadas minorias, como, os judeus, os hereges, os homossexuais, as bruxas, os leprosos e as prostitutas.
Consideraremos, adiante, como as perseguições a essas minorias em geral contribuíram para a formação e desenvolvimento de uma idéia de perversão consolidada em 1444, com o aparecimento da associação do termo perversão ao termo sexual, tal como aponta Lanteri-Laura. Para este autor, o termo perversão, em Francês perversion, tem registro desde 1444, advindo do Latin Clássico perversio, que, por sua vez, originou-se de perversum do verbo latino pervertere, que inicialmente significava ´revirar, inverter´ e que logo adquiriu o sentido de ´virada inoportuna´. A partir deste período, a palavra associou-se a idéia de algo pejorativo, de forma quase definitiva, indicando uma má inversão.
Este foi o sentido que passou a ser o mais usual do termo no decorrer dos tempos até o século XIX, quando foi adotado pelo discurso médico a princípio, tal qual se usava no senso comum. A idéia fundamental era a transformação de algo bom em ruim, maléfico, degradante, ou seja, similar a uma doença, entretanto, ainda não contemplava o vínculo com o termo, estava mais relacionada a uma modificação de uma função fisiológica.(p.23, 1994). O Cristianismo, desde seu estabelecimento, ainda no império romano, exerceu uma determinante influência para a sedimentação do pensamento persecutório. Todos os acontecimentos foram definidos pelo exercício da sua doutrina, em todos os âmbitos: político, social, filosófico, científico, econômico e principalmente religioso. A verdade era definida a partir da doutrina religiosa do Cristianismo, uma verdade inquestionável e absoluta que estava do lado do bem, na guerra contra o mal.
Na defesa desse bem muitas batalhas foram travadas. O fato mais notável desta atitude foram as cruzadas, que tiveram início no século XI, ocasião na qual o papa Urbano II, em 1095, fez um apelo aos cristãos, pobres e ricos, para combaterem e expulsarem os turcos e os árabes, considerados os inimigos, os infiéis representantes e defensores do mal que haviam atacado e conquistado uma longa extensão de terras de povos cristãos - eram, assim, as chamadas invasões bárbaras. As cruzadas, que eram ações militares implementadas pela Igreja Católica contra seus inimigos, constituíram um fato marcante da Idade Média e representavam bem o clima de adversidade que pairava sobre aqueles povos. Os povos em guerra significavam, um para o outro, o Bem e o Mal simultaneamente, ou seja, um era oposto ao outro. Então, evidencia-se por esse fato, o alto valor que essa idéias de Bem e de Mal tinha para eles, já que essas forças se apresentavam de maneiras tão puras e reais no cotidiano daquelas gentes.
O clima de medo, promovido pelas cruzadas, contribuiu grandemente também para, em parte, o fortalecimento de uma atitude muito presente na vida medieval, a tendência à vida em comunidade, porque permitia exatamente uma melhor condição da defesa contra o inimigo fatal. Mas podemos encontrar outras conseqüências da vida em comunidade, além do fortalecimento do espírito defensivo, mesmo porque, nos primeiros setenta anos após o ano mil, os tempos foram muito mais pacíficos e calmos que no período posterior com o início das cruzadas. Estas tiveram como motivo fundador à tomada da Palestina pelos turcos em 1071, que ocuparam gradativamente grande parte da Ásia Menor e organizaram um império que durou até o século XIV. Esta conquista tornou impossível a peregrinação dos cristãos à Terra Santa. As cruzadas vieram então para garantir, de novo, um caminho livre à Jerusalém. Estes combates duraram cerca de cento e setenta anos, neste intervalo a cidade de Jerusalém foi retomada pelos cristãos (1099) e reconquistada pelos turcos (1187). Estudos buscam averiguar a versão dos invasores sobre estes acontecimentos, o mal-visto por outros olhos, mas não consideraremos aqui este outro olhar.
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