terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O medievalismo e o discurso religioso

Artigo do amigo e psicanista ANTÔNIO SECUNDO
publicado no jornal Diário do Nordeste

A Idade Média, expressão surgida no século XV, durou cerca de mil anos, com início marcado no século IV, dando seu último suspiro no final século XV. Foi ainda dividida em períodos, devido a sua longa extensão, mas adotaremos aqui a divisão mais presente nas nossas pesquisas que contempla três etapas: A Alta Idade Média (do séc. IV ao séc. IX), A Idade Média Central (do séc. X ao séc. XIII) e A Baixa Idade Média (do século XIV ao XV). Percorre-lhe o universo é o motivo central dessa edição.


Foi um período por muito tempo esquecido pelos historiadores, chegando a ser tratado preconceituosamente de ´A Idade das Trevas´, período no qual se imaginava que houvesse uma estagnação em tudo, o que não é verdade. Ao contrário, foi um tempo rico em transformações, no qual ocorreu o surgimento de grandes cidades e com elas o desenvolvimento do comércio, das assembléias representativas, o nascimento do Individualismo, o julgamento por tribunais, a ascensão da Arquitetura, da Arte e da educação colegial, a criação das primeiras universidades, a solidificação do estudo do Direito, a criação das monarquias nacionais, que permitiram mais tarde a criação do estado moderno, e muitas outras conquistas até hoje tão fundamentais para a humanidade.

Não devemos, porém, nos esquecer de que foi um momento de grandes adversidades, tais como a fome, a peste negra, as guerras, as atitudes preconceituosas, a perseguição, a tortura e muitas outras. Consideramos que tudo isso representa a complexidade daquele período que deve ser observado e considerado nas pesquisas contemporâneas em seus mais diversos âmbitos.

Nosso ponto de partida é o ano 1000 da era cristã, uma data marcante na história da humanidade, na qual se situa uma virada para uma série de coisas no mundo ocidental, e que ficou inscrito principalmente como o ano do início de uma mudança de perspectiva da humanidade perante o futuro. Foi esperado como o último, o ano do Juízo Final. Muitas outras datas foram previstas para o fim do mundo após esta, só de 1186 a 1494 foram 20 previsões, ou seja, tornou-se uma idéia recorrente e permanente que estava relacionada diretamente ao evangelho de São Matheus, no qual se relatava os sinais indicados por Cristo aos seus discípulos de um fim dos tempos: terremotos, fome, guerras - situações muito presentes na Idade Média - eram alguns desses indícios. (Richards, pág. 14, 1993).

É importante notar que as idéias dos malefícios e destruição daquela época estão associadas diretamente aos pecados praticados pela própria humanidade, sendo aquelas adversidades consideradas castigos. A idéia do mal logo se ligou à de um Anticristo, figura central na Idade Média, que, a partir do século X, passou a ser investigado com grande freqüência e interesse pelos teólogos. O Anticristo tornou-se então um dos personagens principais da cena medieval e sobre quem muito se investigou a partir daquela época, como aponta Richards em seu - ´Estudos sobre as minorias na Idade Média: Desvio, sexo e danação´.(1993)

A natureza do inimigo

O surgimento de uma figura como o Anticristo servia para apontar um caminho a ser evitado, um exemplo a não ser seguido e principalmente um inimigo a ser combatido. Para isso, era preciso conhecê-lo, identificá-lo. Foi seguindo o rastro destas idéias que muitas perseguições foram forjadas e muitas classes de pessoas foram consideradas anticristos, notadamente as chamadas minorias, como, os judeus, os hereges, os homossexuais, as bruxas, os leprosos e as prostitutas.

Consideraremos, adiante, como as perseguições a essas minorias em geral contribuíram para a formação e desenvolvimento de uma idéia de perversão consolidada em 1444, com o aparecimento da associação do termo perversão ao termo sexual, tal como aponta Lanteri-Laura. Para este autor, o termo perversão, em Francês perversion, tem registro desde 1444, advindo do Latin Clássico perversio, que, por sua vez, originou-se de perversum do verbo latino pervertere, que inicialmente significava ´revirar, inverter´ e que logo adquiriu o sentido de ´virada inoportuna´. A partir deste período, a palavra associou-se a idéia de algo pejorativo, de forma quase definitiva, indicando uma má inversão.

Este foi o sentido que passou a ser o mais usual do termo no decorrer dos tempos até o século XIX, quando foi adotado pelo discurso médico a princípio, tal qual se usava no senso comum. A idéia fundamental era a transformação de algo bom em ruim, maléfico, degradante, ou seja, similar a uma doença, entretanto, ainda não contemplava o vínculo com o termo, estava mais relacionada a uma modificação de uma função fisiológica.(p.23, 1994). O Cristianismo, desde seu estabelecimento, ainda no império romano, exerceu uma determinante influência para a sedimentação do pensamento persecutório. Todos os acontecimentos foram definidos pelo exercício da sua doutrina, em todos os âmbitos: político, social, filosófico, científico, econômico e principalmente religioso. A verdade era definida a partir da doutrina religiosa do Cristianismo, uma verdade inquestionável e absoluta que estava do lado do bem, na guerra contra o mal.

Na defesa desse bem muitas batalhas foram travadas. O fato mais notável desta atitude foram as cruzadas, que tiveram início no século XI, ocasião na qual o papa Urbano II, em 1095, fez um apelo aos cristãos, pobres e ricos, para combaterem e expulsarem os turcos e os árabes, considerados os inimigos, os infiéis representantes e defensores do mal que haviam atacado e conquistado uma longa extensão de terras de povos cristãos - eram, assim, as chamadas invasões bárbaras. As cruzadas, que eram ações militares implementadas pela Igreja Católica contra seus inimigos, constituíram um fato marcante da Idade Média e representavam bem o clima de adversidade que pairava sobre aqueles povos. Os povos em guerra significavam, um para o outro, o Bem e o Mal simultaneamente, ou seja, um era oposto ao outro. Então, evidencia-se por esse fato, o alto valor que essa idéias de Bem e de Mal tinha para eles, já que essas forças se apresentavam de maneiras tão puras e reais no cotidiano daquelas gentes.

O clima de medo, promovido pelas cruzadas, contribuiu grandemente também para, em parte, o fortalecimento de uma atitude muito presente na vida medieval, a tendência à vida em comunidade, porque permitia exatamente uma melhor condição da defesa contra o inimigo fatal. Mas podemos encontrar outras conseqüências da vida em comunidade, além do fortalecimento do espírito defensivo, mesmo porque, nos primeiros setenta anos após o ano mil, os tempos foram muito mais pacíficos e calmos que no período posterior com o início das cruzadas. Estas tiveram como motivo fundador à tomada da Palestina pelos turcos em 1071, que ocuparam gradativamente grande parte da Ásia Menor e organizaram um império que durou até o século XIV. Esta conquista tornou impossível a peregrinação dos cristãos à Terra Santa. As cruzadas vieram então para garantir, de novo, um caminho livre à Jerusalém. Estes combates duraram cerca de cento e setenta anos, neste intervalo a cidade de Jerusalém foi retomada pelos cristãos (1099) e reconquistada pelos turcos (1187). Estudos buscam averiguar a versão dos invasores sobre estes acontecimentos, o mal-visto por outros olhos, mas não consideraremos aqui este outro olhar.

http://www.diariodonordeste.com.br/materia.asp?codigo=523965

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